domingo, 27 de junho de 2010

JESUITAS E ÍNDIOS: MISSÕES IMPOSSIVEIS

Retirei este texto do site da Revista Aventuras na História, publicada pela Editora Abril. Ele trata das Missões dos Jesuítas no Paraná e no Rio Grande do Sul e a ação dos Bandeirantes Paulistas em conquistar essas reduções, capturando seus habitantes indígenas para vende-los como escravos. O original encontra-se neste endereço: http://historia.abril.com.br/religiao/jesuitas-indios-missoes-impossiveis-452275.shtml não deixem de conferir no site e também ler a edição de banca, impressa e bem feita.

 

JESUÍTAS E ÍNDIOS: MISSÕES IMPOSSÍVEIS

 

Durante 140 anos, no sul do Brasil, índios guaranis e padres jesuítas viveram uma experiência utópica que terminou com o massacre de 100 mil índios       em pleno século 17

 
por Luís Augusto Fischer

 

Você olha para o mundo de hoje e vê: montes de desempregados sem perspectiva de trabalho; crianças sem escola nem lugar para dormir, descartadas do mundo. Milhões sem acesso à mínima educação, menos ainda à arte e à cultura. Fome de um lado, superabundância do outro. Guerras em nome de interesses privadíssimos.

Dispondo de indignação moral, mesmo que de pouca, qualquer um tem vontade de fazer alguma coisa, nem que seja apenas sonhar com um mundo menos injusto. Por exemplo: uma sociedade de pleno emprego, em que não haja as vergonhosas filas nas madrugadas à procura de uma empreguinho humilhante. Escola e saúde para todo mundo, crianças bem tratadas, com sala de aula, roupa, atenção. Ninguém com fome e ninguém com riqueza acumulada para ostentação. Progresso tecnológico, desenvolvimento artístico, alfabetização para todos.

Todos nós brasileiros já ouvimos falar no colégio que essa utopia igualitária já existiu. Floresceu por décadas, antes de ser destruída em uma guerra pra lá de violenta, bárbara. Foi a realização dessa utopia, conhecida genericamente como Missões, que levou o historiador Décio Freitas a um de seus mais conhecidos livros, publicado pela primeira vez em 1982, quando a miséria brasileira nem era tão explícita quanto agora, quando mal saíamos da ditadura militar e buscávamos alternativas de futuro, quando fazia o maior sentido retomar experiências luminosas do passado para confrontar a obscuridade do presente.

Com o nome de O Socialismo Missioneiro, o livro fazia uma descrição engajada (nunca neutra) do passado das Missões. Eram os anos finais do regime militar instalado em 1964, dois antes da campanha por eleições diretas para presidente, eleição que só se realizaria muito depois, em 1989, e sete anos antes da queda do muro de Berlim, o fim simbólico da experiência comunista, que na época se chamava de “socialismo real”, em oposição ao socialismo teórico. Por mais estranho que isso possa parecer hoje, em 1982 a discussão sobre o socialismo estava viva. E, mais ainda, no Brasil ela era patrocinada em grande medida por grupos políticos nascidos dentro da Igreja Católica.

O livro de Décio entrava nessa disputa conceitual, mas a partir de uma experiência remotíssima – a ainda hoje impressionante – de organização social, econômica, política e cultural protagonizada por índios guaranis e por padres jesuítas, entre os anos 1610 e 1750, no sul do Brasil. Uma parceria que dera certo, segundo Décio, porque os índios encontraram nas Missões uma estrutura viável para sua sobrevivência, ao passo que os religiosos realizaram nelas uma das aspirações primitivas de todo o cristianismo – a restauração de certo modo solidário de viver e ser, em que todos trabalham e repartem as riquezas.

Longe de ser um consenso, essa visão causa arrepios a muitos historiadores e antropólogos dispostos a atacar os efeitos do trabalho dos padres, que aculturaram os guaranis, impondo-lhes modos de vida e pensamento estranhos à sua história. As Missões, também chamadas “reduções”, sujeitaram o índio, que passou a viver em vilas organizadas, a praticar a monogamia, a trabalhar em horários certos, a prover o futuro de médio prazo, a ser católico.

O outro lado lembra, porém, coisas positivas: se a questão era preservar a cultura dos índios, ele diz que os jesuítas fizeram isso: aprenderam seu idioma, descreveram sua gramática e, com ela, ensinaram futuras gerações. E mais: se as Missões sujeitavam os índios antes livres, caçadores, poligâmicos, que plantavam somente o que comeriam nos tempos imediatos, sem preocupação com o futuro, elas também significaram uma alternativa concreta de vida. Fora delas, o que aconteceu realmente com os guaranis e outros tantos povos indígenas? Foram exterminados, regra geral, ou se aculturaram na marra, passando a viver a vida dos brancos sem a menor chance de preservar o que quer que fosse.

Décio Freitas, comprador das boas brigas, sabia de tudo isso quando escreveu seu livro. Levando em conta toda essa polêmica, descreveu o processo histórico com cautela e estratégia. Assim, nos primeiros capítulos fez um detalhado cenário dos séculos 17 e 18, período em que as Coroas portuguesa e espanhola não tinham a menor idéia de quais eram realmente os limites de seus territórios no miolo da América do Sul. Depois descreve os personagens envolvidos na trama: a Coroa espanhola, os guaranis e os jesuítas.

À Coroa interessava expandir os limites das terras sob seu comando e, quem sabe, forjar uma saída para o Atlântico, passando sobre o que hoje são Santa Catarina e Paraná. Os guaranis, menos um povo e mais um “mosaico étnico”, eram coletores e caçadores, tendo pouca prática na agricultura permanente. Constituíam uma sociedade sem classes, vivendo num comunismo primitivo e ameaçados pela chegada dos espanhóis, de quem só podiam esperar a escravidão. Os jesuítas, de sua parte, queriam evangelizar os índios. Para isso, era preciso conservá-los livres. Nunca se confirmaram as suspeitas de que tivessem interesse econômico específico, como acumular riquezas em proveito próprio – embora a Companhia de Jesus tenha sido acusada, mais de uma vez, de acalentar o projeto de um Estado teocrático.

Com a instalação das Missões, a Coroa ganharia o território e os impostos, os jesuítas teriam sua prática catequética realizada e, mais ainda, os guaranis teriam três ganhos – viriam a experimentar um salto tecnológico extraordinário, nas práticas agrícolas e no aprendizado de técnicas artesanais e industriais, manteriam uma condição de liberdade superior à que teriam se fossem submetidos à escravidão e não precisariam mudar algumas marcas essencias de seu modo de vida, preservando sua língua, por exemplo. Com essa análise, Décio defende uma tese inquietante: feitas as contas, os guaranis não teriam sido um elemento passivo na concepção e na construção das Missões, pelo contrário. Sua vontade coincidiu com a dos padres e da Coroa espanhola, naquele momento.

Para entender melhor essa longa convivência, de quase um século e meio, é preciso voltar ao início, por volta de 1610, quando as primeiras reduções foram estabelecidas, no atual limite entre o Paraguai e o estado brasileiro do Paraná. Os índios das Missões, cujos humores guerreiros haviam sido abrandados pelo cristianismo, viraram presas fáceis dos bandeirantes oriundos de São Paulo que corriam o sul em busca de riquezas e de mão-de-obra escrava.

Para garantir segurança, era preciso ir mais longe. Os jesuítas arregimentaram os índios que sobraram e empreenderam uma longa jornada rumo ao sul, correndo ao longo do rio Paraguai. Chegando ao atual norte da Argentina e noroeste do estado do Rio Grande do Sul, guaranis e jesuítas fundaram e fizeram prosperar nada menos que 30 povoamentos, que alcançaram uma população espantosa para a época – em 1736, seriam mais de 102 mil indivíduos. Para comparar: em 1740, a maior cidade brasileira, Ouro Preto, tinha uma população de 50 mil pessoas e a maior cidade da América, o México, tinha 70 mil.

As terras ocupadas pelos 30 povos pertenciam à Espanha (apenas sete deles ficavam à esquerda do rio Uruguai, em território que viria a ser brasileiro), mas a perseguição dos bandeirantes não conhecia fronteiras. Em 1641, numa batalha perto do rio Mbororé, os guaranis resistiram com canhões feitos de grandes taquaras amarradas com couro e expulsaram os aventureiros.

A Coroa portuguesa mal sabia o que fazer, e na prática a única ação de gente lusa ali era a dos bandeirantes. Mas a civilização jesuítico-guarani começou a ser desmanchada não pelos bandeirantes, mas pelas Coroas, em 1750. Naquele ano, foi assinado o Tratado de Madri, pelo qual Portugal abria mão da Colônia de Sacramento, pequeno mas importante porto fundado em 1680 na beira do rio da Prata, exatamente em frente a Buenos Aires, e a Espanha cedia a região à margem esquerda do rio Uruguai – exatamente a localização dos sete famosos e malditos Povos que ficam em território hoje gaúcho. Era a primeira reconfiguração legal do já antigo Tratado de Tordesilhas, que ainda no século 15 tinha destinado a Portugal apenas o litoral atlântico.

Para Décio, a atitude da Espanha era criminosa em mais de um aspecto, mas especialmente porque as Missões não eram agrupamentos irregulares e, pelo contrário, recolhiam impostos adequadamente, prestavam subordinação ao rei, forneciam homens para tarefas as mais variadas (guerras, mas também construção de igrejas em outras partes do território hoje argentino etc.). Quer dizer: os guaranis, com os jesuítas, eram súditos leais à Coroa espanhola. Isso sem contar o fato trivial de que eram nativos da América, e portanto viviam aqui desde tempos remotíssimos.

Passados para domínio português, os padres e índios tiveram de deixar as Missões. Os índios resistiram ainda depois de os jesuítas terem aceitado a transferência imposta por Madri. Mas foram chacinados, em guerra sistemática e moderna, comandada por Gomes Freire de Andrade, figura que ganhou um enorme elogio literário em O Uraguai, poema épico de Basílio da Gama que perpetuou uma interpretação ufanista, pró-lusitana e antijesuítica. Décio diz que os padres “imaginaram erroneamente que a própria Companhia de Jesus, um dos baluartes do colonialismo, permitiria que ultrapassassem os limites dos interesses do colonialismo”. Em compensação, “as alternativas do colonialismo não deram melhor resultado: produziram, simplesmente, a genocida extinção dos guaranis”, escreveu.

A terceira edição do livro mudou de nome. Passou a chamar-se Missões – Crônica de um Genocídio. Já estávamos em 1997, e o autor sabia que não valia a pena reiterar nos mesmos termos o debate sobre a natureza eventualmente socialista utópica do episódio missioneiro. (Mas talvez pudesse ter acrescentado calor à conversa, lembrando que o último local nominalmente socialista, Cuba, é dirigido por um sujeito que aprendeu muito com os padres jesuítas.) Preferindo a denúncia do massacre desde o título, como a mostrar o crime histórico cometido ali contra uma população civil como noutros tempos ocorreria em Canudos, no Contestado ou em Palmares, Décio Freitas usa em seu ensaio da melhor verve de promotor público, mobilizando sua mais vibrante retórica para lembrar que a história não pode ser negligenciada.

 

Um comentário:

Tee disse...

Muito bom o texto, fiquei com vontade de ler o livro